domingo, 23 de maio de 2010

Cena 1 - Sonhos

“Sol, muito sol. Não, apenas sol. Poucas nuvens”. O ar tão quente que amarelo parecia. Também o percebia parado, contribuindo para a sensação de que o tempo não passava. Pensou em se levantar e procurar refúgio na sombra, mas o chão morno amolecia seu corpo, anestesiando-o.
A posição do sol mudou e passou a lhe incomodar os olhos. Decidiu virar-se. Lentamente, rolou para a lateral, até encostar a barriga e, então, metade do rosto no chão de pedra. Uma leve tontura veio, ocupou sua atenção por um instante, e deixou-a. Insolação. Riu da consciência do exagero de seu pensamento. A movimentação dos músculos do rosto, dos lábios e da língua ocasionou certo prazer, um alívio. Mais uma vez, considerou levantar-se. Mas não quis deixar as cores, nem os cheiros das flores que não existiam e as circunstâncias que inventara. Havia alguém brincando com seus pés, admirando-os. Enquanto lembrava-se de sentir cócegas, tentava discernir as flores ao redor. Uma pintura impressionista. Não sabia onde começava ou terminava cada detalhe. Não havia contorno. Sorriu, feliz com a conclusão.

A pessoa que tocava seus pés manifestou-se.

“Você tem pés estranhos.”

“Estranhos?” – replicou – “ainda que esse adjetivo seja comum a pés?” – ponderou. Todos os pés são igualmente estranhos.

“Mas lindos” – disse o menino aos seus pés.
Cecília sorriu e repetiu, em sua cabeça, o adjetivo até que perdesse seu sentido. Lindos. Lindos sonhos. Lindos cheiros. Lindos pés. Não se conteve, abriu os olhos.

Abriu-os para o mundo. Real e concreto. A claridade feriu seus olhos, obrigando-a a fechá-los novamente. Abriu, fechou, abriu. As cores da verdade eram mais fortes e exprimiam um concretismo o qual Cecília não queria encarar. Quis voltar para seu príncipe, anjo, cavaleiro. Quis voltar a ser fada, boneca. Quis.

O primeiro som que lhe chamou a atenção após o devaneio foi o de passos. Pesados e apressados. Tentou repudiá-los, sem sucesso. Sua mãe aproximava-se pelas escadas. Quando os passos cessaram segurou o ar em seus pulmões e esperou o que sabia que viria.

“Cecília, pare de sonhar” – explodiu. Arrependida do exagero, a mãe atenuou a voz – “Volte”.

A menina fez que sim com a cabeça e sem ecoar uma só palavra levantou-se e desceu as escadas, com sua mãe logo atrás falando baixo consigo mesma. Cecília bloqueou os ruídos, fazendo questão de torná-los inaudíveis ou incompreensíveis. Era melhor não saber tudo.

A caminho de seu quarto passou pela cozinha e apanhou uma maçã. Fechou a porta de seus quarto e deu uma mordida. Olhou para sua cama e a mala por fazer e as roupas espalhadas pelos cantos. Sentiu uma injeção de excitação. Só mais três dias e estaria longe de casa. Riu de si mesma e de quão dramática estava nesse dia. Devem ser os hormônios restantes da adolescência. Sim, restantes. Faculdade não era para adolescentes. Dessa vez, soltou uma gargalhada.

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