domingo, 30 de maio de 2010

Cena 3 - A casa

Em dez minutos estava na casa de sua avó. Reconhecera a fachada pelas fotos. Fernando estacionou o carro em frente à cerca branca. Cecília se lembrou da foto que guardava em sua gaveta de seu pai, ainda criança, sentado sobre cerca com uma bola na mão. Sorriu. E quando percebeu Fernando estava abrindo sua porta. Cecília desceu ignorando a mão estendida do menino.

Ele suspirou. Ela suspirou.

Fernando ficou encostado no carro enquanto ela abria o portão e caminhava na direção da porta. Antes de tocar a campainha, ela olhou para trás. Ele ficou ereto e deu um passo. Ela deu meio sorriso e se virou. Tocou a campainha e enquanto esperava a porta se abrir não percebeu o menino entrar no carro e ir embora.

Uma senhora enrugada, de cabelos grisalhos e presos desleixadamente com grampos no topo da cabeça atendeu a porta.

Cecília reconheceu o rosto da avó, que sorriu por um instante. Sua fisionomia mudou e a velha pareceu envelhecer mais alguns anos. Logo se virou e com dificuldade entrou na casa escura e entulhada e se sentou numa poltrona decadente. Cecília a seguiu.

Parou na entrada da casa. A sua esquerda havia uma cozinha, a sua frente uma escada e a sua direita a sala onde sua avó estava sentada. Perguntou, hesitante, onde deveria deixar suas coisas. Mas a velha pareceu não ouvir. Perguntou novamente e mais alto.

“No quarto a sua direita, no topo da escada”

“Certo” – Cecília disse para si mesma.

A escada de madeira e coberta por carpete denunciava os passos de Cecília a cada degrau. Entrou no quarto a sua direita. Escuro como o resto da casa, mas sem entulhos. Havia uma cama pequena, um armário embutido na parede, uma cadeira e uma pequena mesa.

As paredes eram amareladas, talvez um dia tenham sido brancas. Talvez um dia seu pai tivesse dormido naquele quarto. Cecília sentiu-se nostálgica. Uma nostalgia que nem era dela, mas de seu pai. Ou assim a menina esperava que fosse. Sentou-se na beirada da cama e olhou pela janela, enxergou sua avó mais jovem e ágil, seu pai menino e despreocupado. A moça era bonita, com traços fortes e inesquecíveis. O menino era magricelo e obediente. A fantasia logo se desfez com um enorme barulho. Parecia que uma estante havia cedido ao peso das tranqueiras e tudo estaria espalhado pelo chão.

Cecília correu escadas abaixo. Encontrou a avó sentada na mesma poltrona segurando uma caixa de chocolates que não estava lá antes. Na cozinha, como esperado, panelas forravam o chão.

“Vó?” – a menina tentou – “está tudo bem com você?”

“Chocolates?” – ela ofereceu estendendo a caixa à sua neta. Cecília riu, olhou para a cozinha e disse que era melhor que ela arrumasse a cozinha antes. A avó franziu a testa.

“Chocolates antes de tudo”

Cecília se sentou no sofá à frente da velha poltrona e pegou um chocolate da caixa.

As duas ficaram sentadas saboreando chocolates até que escurecesse. A mais nova sentiu-se grata por estar na presença de um adulto que não indagasse suas decisões. Alguém que não forçaria suas opiniões em sua vida. A velha ficou grata pela companhia.

O cheiro do chocolate a lembrava de algo. Uma memória. Melinda ressurgiu. Lembrou da amiga e de suas conversas. Da desenvoltura daquela morena que não filtrava suas idéias de suas palavras.

“Cecília, você é muito cabeça-dura” – riu Melinda – “Eu não estou julgando, só estou esclarecendo que não nasci para a poligamia” – riu de novo e abraçou a amiga – “e fico surpresa de vê-la defendendo esse tópico tão veementemente”

“Eu simplesmente não acho que devemos etiquetar como certo ou errado o que não conhecemos” – explicou Cecília num tom de voz baixo e contraído. Era como a menina se sentia perto da colega. Apagada.

“Você diz isso sobre tudo”

Melinda gargalhou enquanto passava os dedos entre os cabelos e logo mudou de assunto.

Cecília deu meio sorriso e se voltou para a sala de estar da avó. Olhou para baixo, para si mesma, esperando se reencontrar. Nada. Era a mesma de sempre.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Cena 2 - A ida

Cecília beijou seus pais e subiu para o ônibus. Carregando sua mochila nas costas, apoiada em apenas um ombro, procurou os números correspondentes aos de sua passagem. Ao encontrá-los guardou sua mochila em baixo do banco e escaneou o ônibus, analisando os passageiros. A maioria parecia estar voltando para casa. Percebeu as diferenças no vestuário, no comportamento. Ou era apenas a imaginação da menina.
Esparramou-se no banco, grata por ter o banco ao lado desocupado.
Lembrou-se de sua mãe e suas palavras na noite anterior.

“Cecília, você não precisa ir à sua avó. Não precisa provar nada.”

“Provar o quê?!”

Provar que não precisava de ajuda. Não. Descobrir. Descobrir sua composição. Descobrir com que cores seria pintada, com que palavras seria descrita.

Uma cidade no interior era uma opção. Escolheu a reclusão.

Sua mãe não a entendeu. Seu pai, não se sabe. Foram poucas as palavras, sempre poucas.

Do lado de fora, a paisagem não era espetacular. Cada vez mais seca e dura.

A viagem seria curta. Fechou os olhos e permaneceu inerte. Quando os abriu, casas simples e coloridas montavam o cenário. Não saberia dizer nada sobre a proximidade da casa de sua avó. Percebeu o ônibus diminuir a velocidade. Antes mesmo de o veículo parar completamente, os passageiros começaram a se arrumar para descer. Exceto Cecília. Ela esperou o esvaziamento do corredor para, então, levantar-se e caminhar, segurando sua mochila pela alça, pelo corredor em direção à saída.

Ao passar pela porta do ônibus e pisar o chão de concreto, sentiu uma onda de calor que envolveu seu corpo e o amoleceu.


Ainda abatida pelo calor imperdoável, levantou o rosto e procurou. Um rapaz aproximou-se. Seus olhos eram pretos e redondos, ofuscando os lábios murchos, nariz torto e as cicatrizes do queixo. O rapaz parecia desconfortável em sua própria pele.


“Cecília?” – ele tentou.

“Thiago?” – perguntou a menina, incrédula.

“Não,” - ele arregalou os olhos e continuou – “o Thiago não pode vir, ele viajou, eu acho... Bom, eu sou o Fernando, eu ajudo a sua avó, sabe? Então, fui designado a buscá-la e” – respirou para prosseguir. Mas Cecília não permitiu.

“Tudo bem, então”.

Fernando fez que sim com a cabeça e curvou-se na direção de Cecília, que imediatamente afastou-se, lançando-lhe um olhar assustado e indignado.

“Sua mochila” – ele disse cauteloso – “posso ajudá-la a carregar?”

Cecília inspirou para responder, mas desistindo, expirou todo o ar em seus pulmões e estendeu-lhe sua mochila.

Fernando a segurou e perguntou olhando para os lados da menina – “Cadê sua mala?”

“Que mala?”

“Você só trouxe uma mochila?”

Ela fez que sim com a cabeça.

“Quanto tempo ficará na cidade?” – ele perguntou enquanto caminhava em direção ao carro.

“Não sei’ – Mentiu. Afinal, sabia quanto tempo ficaria.

“Sua avó disse dois meses”

Cecília suspirou e nada disse. A presença de Fernando a perturbava.

Entrou no carro e sentou-se encolhida para a direita do banco do passageiro do carro que ele guiava.

domingo, 23 de maio de 2010

Cena 1 - Sonhos

“Sol, muito sol. Não, apenas sol. Poucas nuvens”. O ar tão quente que amarelo parecia. Também o percebia parado, contribuindo para a sensação de que o tempo não passava. Pensou em se levantar e procurar refúgio na sombra, mas o chão morno amolecia seu corpo, anestesiando-o.
A posição do sol mudou e passou a lhe incomodar os olhos. Decidiu virar-se. Lentamente, rolou para a lateral, até encostar a barriga e, então, metade do rosto no chão de pedra. Uma leve tontura veio, ocupou sua atenção por um instante, e deixou-a. Insolação. Riu da consciência do exagero de seu pensamento. A movimentação dos músculos do rosto, dos lábios e da língua ocasionou certo prazer, um alívio. Mais uma vez, considerou levantar-se. Mas não quis deixar as cores, nem os cheiros das flores que não existiam e as circunstâncias que inventara. Havia alguém brincando com seus pés, admirando-os. Enquanto lembrava-se de sentir cócegas, tentava discernir as flores ao redor. Uma pintura impressionista. Não sabia onde começava ou terminava cada detalhe. Não havia contorno. Sorriu, feliz com a conclusão.

A pessoa que tocava seus pés manifestou-se.

“Você tem pés estranhos.”

“Estranhos?” – replicou – “ainda que esse adjetivo seja comum a pés?” – ponderou. Todos os pés são igualmente estranhos.

“Mas lindos” – disse o menino aos seus pés.
Cecília sorriu e repetiu, em sua cabeça, o adjetivo até que perdesse seu sentido. Lindos. Lindos sonhos. Lindos cheiros. Lindos pés. Não se conteve, abriu os olhos.

Abriu-os para o mundo. Real e concreto. A claridade feriu seus olhos, obrigando-a a fechá-los novamente. Abriu, fechou, abriu. As cores da verdade eram mais fortes e exprimiam um concretismo o qual Cecília não queria encarar. Quis voltar para seu príncipe, anjo, cavaleiro. Quis voltar a ser fada, boneca. Quis.

O primeiro som que lhe chamou a atenção após o devaneio foi o de passos. Pesados e apressados. Tentou repudiá-los, sem sucesso. Sua mãe aproximava-se pelas escadas. Quando os passos cessaram segurou o ar em seus pulmões e esperou o que sabia que viria.

“Cecília, pare de sonhar” – explodiu. Arrependida do exagero, a mãe atenuou a voz – “Volte”.

A menina fez que sim com a cabeça e sem ecoar uma só palavra levantou-se e desceu as escadas, com sua mãe logo atrás falando baixo consigo mesma. Cecília bloqueou os ruídos, fazendo questão de torná-los inaudíveis ou incompreensíveis. Era melhor não saber tudo.

A caminho de seu quarto passou pela cozinha e apanhou uma maçã. Fechou a porta de seus quarto e deu uma mordida. Olhou para sua cama e a mala por fazer e as roupas espalhadas pelos cantos. Sentiu uma injeção de excitação. Só mais três dias e estaria longe de casa. Riu de si mesma e de quão dramática estava nesse dia. Devem ser os hormônios restantes da adolescência. Sim, restantes. Faculdade não era para adolescentes. Dessa vez, soltou uma gargalhada.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Silêncio

Silêncio!

As paredes escutam
Paredes de uniformes
Vestidas de verde-amarelo

Silêncio!

Bateram na mesa
Cabeças nas mãos
Sangue nas paredes

Silêncio!

Um cap caiu
O uniforme rasgou
A corda enforcou

Silêncio!

As paredes escutam
Trocaram de roupa
Estão de arquivos agora

terça-feira, 11 de maio de 2010

Amanhã

Nosso carro

Aquele mesmo

Que não anda sob rodas

Mas que desliza sobre os trilhos

Sabe, eu gosto da sua cor

Cor que eu não lembro agora

Também gosto quando nosso carro fica ao léu

Mesmo que eu não perceba o céu

O que me lembro é da sua mão

Segurando a minha, lembra?

Esqueci o que me disse sobre os pássaros

Foi logo depois que recitou meu poema

É, nosso carro

Tantos encontros

Em tantos mais meses

Muitos corações remendados

E mais sorrisos ainda

O carro é nosso

Engraçado,

Eu sempre volto com um banco vago

Segurando a bolsa e as memórias

Não podem cair

Podem se perder

Então, amanhã, segura para mim?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Liberdade

Tá, a mídia nos pressiona. Tá, as revistas só colocam meninas magérrimas nas suas capas. Tá, a TV parece só perceber essas, chamadas, beldades de nada de carne e, algum, osso. Tá, eu já sei disso, eu vivo isso. Mas onde está a nossa liberdade? A liberdade de pensamento, a liberdade de ação, a liberdade de sentir o que quisermos sentir?


Então, ficou decidido: o mundo tenta colocar na sua cabeça que você seria muito mais feliz uns 10 kg mais magra. Mas, e você? O que pensa?

Já parou para pensar que isso só é verdade se você acreditar? Já parou para pensar que já te disseram que vermelho é uma cor muito melhor que rosa, no entanto, você, que gosta é de rosa, não se deixou levar? E porque que quando dizem que ser magérrima é melhor, você acredita?

É muito catártico falar mal da mídia e das passarelas que só aceitam aquele determinado tipo de corpo. Mas o que isso muda para você?

Somos livres. Livres para pensar. Para agir. Para mudar. E, claro, para escolher. Se você pensou, agiu, escolheu.

Pode ter escolhido pensar que a pressão foi demais e, agora, você só come abacaxi, porque assim será como determinaram que fosse melhor para você. E, talvez, você seja muito feliz com toda essa magreza, mas, talvez, não.

Ou pode ter escolhido usufruir da sua liberdade de pensamento e decidido que a vida não se resume a massa corpórea.

À você que quer ser feliz, não importa seu peso, ria das revistas que dizem o contrário. Desligue a TV e faça sua própria história. Use a sua liberdade conscientemente.

É mentira que é mais feliz aquele que ignora.

É mais feliz aquele sabe escolher.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Invisível

Ela sempre sorria
Dizia Bom-Dia
Certa vez ela parou
E ninguém nem notou
Ela simplesmente
Nunca mais voltou